Existem alguns chavões
usados para falar de saneamento básico, alguns são até engraçados, não fossem
realmente trágicos. “Obra enterrada não dá voto”, bradam políticos
correligionários de Odorico Paraguaçu, prefeito da fictícia Sucupira. Na
oposição ficam aqueles que esgrimam com números: “Um real aplicado em
saneamento economiza quatro reais em gastos com a saúde”, uma argumentação que
ganhou a simpatia dos militantes. Fato é que a falta de saneamento manda muita
gente para os hospitais, ou pior. E a água contaminada já é, também, impeditiva
para o desenvolvimento econômico, seja para empresas que precisam de água de
qualidade para suas atividades, ou para os negócios ligados ao turismo, o que
em véspera de Copa do Mundo deveria acender luzes de alerta em todos os
ministérios, governos estaduais e prefeituras.
Um exemplo dos problemas está na falta de balneabilidade de
praias e outros locais públicos. Em 2010, a CETESB, empresa que monitora qualidade
ambiental no Estado de São Paulo, liberou para banho, durante todo o ano, menos
de 30% de 83 praias monitoradas no litoral norte, região de turismo nobre. O
veto a banhistas se dá, na maior parte das vezes, pela contaminação da água e
da areia por esgotos.
Dados do Censo do IBGE
sobre saneamento, divulgado no final de 2011, mostram que, em 2008, apenas 55%
das pouco mais de 5.500 cidades brasileiras tinham algum tipo de coleta de
esgotos. O índice melhora no Sudeste, chegando a 95%, e cai para menos de 15%
na região Norte. Coleta adequada não existe para 55% das casas dos brasileiros;
quase 2.500 municípios não têm nenhum tipo de coleta. Este quadro desanimador
tende a mudar no médio prazo, na opinião do secretário de Recursos Hídricos do
Estado de São Paulo, Edson Giriboni. “Há mais recursos sendo destinados ao
saneamento desde 2007, quando foi aprovada a Lei Federal 11.445, que estabelece
a universalização do saneamento básico como um compromisso da sociedade
brasileira”, explica.
Na primeira fase do PAC 1 – o Programa de Aceleração do
Crescimento, o saneamento recebeu cerca de R$ 40 bilhões entre os anos de 2007
e 2010, e no PAC 2 estão previstos mais R$ 41,1 bilhões para investimento em
ações de saneamento no quadriênio 2011-2014. Esta dinheirama deveria beneficiar
1.116 cidades em todo o país, mas não é isto que está acontecendo. Dados do
Ministério das Cidades mostram que foram efetivamente realizados apenas 16% das
obras do PAC 1, aplicando menos de 10% dos recursos. Ou seja, de R$ 40 bilhões
previstos, menos de R$ 4 bilhões foram gastos.
Planejamento e gestão deficientes travam a execução das
obras: projetos de engenharia inadequados, insuficiência de quadros técnicos no
setor público e falta de capacidade técnica e gerencial para fazer frente ao
grande número de investimentos simultâneos. A ineficiência do governo federal
atrasa a consulta pública do Plano Nacional de Saneamento, que deverá definir
as metas a serem alcançadas até 2030. Na falta dessa peça de planejamento, o
setor privado se acanha: não investe nem forma parcerias com o setor público
para avançar em projetos e obras.
Planejamento é fator-chave para oferecer saneamento básico
adequado a mais da metade dos lares brasileiros, segundo Ana Lucia Britto,
professora do Departamento de Urbanismo e Meio Ambiente e vice-coordenadora do
programa de Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ (Universidade Federal do Rio de
Janeiro). A lei determina que caiba aos municípios prover o saneamento, mas
muitas vezes o problema extrapola os limites das cidades. “É preciso realizar
planejamentos integrados, como os de atuação coordenada em grandes áreas
metropolitanas”, diz Ana Lúcia, destacando a experiência da região
metropolitana de Belo Horizonte, que envolveu prefeituras e órgãos públicos
para integrar os projetos ligados ao saneamento básico numa proposta de
desenvolvimento regional que contempla gestão, proteção e recuperação dos
recursos hídricos, universalização do saneamento básico, gestão dos resíduos
sólidos, recuperação de áreas de interesse para a conservação, e a
intensificação do uso do espaço urbano.
Na opinião de Ana Lucia, o exemplo deve ser observado por
outras regiões metropolitanas e cidades de maior porte, aproveitando também que
todos os municípios brasileiros devem apresentar planos de saneamento até o
início de 2014, caso contrário vão perder o acesso a verbas federais. No caso
de municípios menores, a pesquisadora sugere a formação de consórcios de
cidades da mesma bacia hidrográfica – ou seja, banhadas pelo mesmo rio e seus
afluentes –, uma vez que a maioria dos municípios brasileiros, com menos de 50
mil habitantes, não tem capacidade técnica para elaborar esses planos. De fato,
até agora apenas 5% das cidades apresentaram os planos de gestão que são a
condição, segundo a Lei 11.445, para a contratação das obras e a concessão dos
serviços a empresas privadas. Parte da solução está no PAC 2, que destinou
recursos para que as prefeituras possam contratar serviços técnicos ou
capacitar servidores para elaborar os planos de saneamento.
Economia
de primeiro mundo; saneamento
O
Brasil ocupa a sexta posição no ranking das
maiores economias do mundo. Mas, no que se refere a saneamento, despenca para a
67ª posição, segundo a Organização das Nações Unidas. O estudo Benefícios Econômicos da
Expansão do Saneamento Brasileiro, elaborado pelo Instituto Trata
Brasil (ITB) e Fundação Getulio Vargas (FGV), ilustra mais um contraste do país
que cresce sem aparar desigualdades. Do melhor desempenho, de Jundiaí (SP), com
92% de esgoto tratado, ao último lugar, com apenas 2%, da capital de Rondônia,
Porto Velho, parece haver uma fossa séptica que exala mau cheiro pelo ralo que
descuida do interesse público humanitário.
O saneamento em Jundiaí começou nos anos 70 do século
passado, quando áreas de mananciais e de proteção ambiental (Serra do Japi) se
tornaram objeto de uma política pública rigorosa: definiu-se então que os rios
não poderiam mais receber os esgotos. O cumprimento da regra por seguidas
administrações garantiu a coleta e o tratamento de 100% do esgoto de toda a
área urbana de Jundiaí antes mesmo da virada do milênio. Foi com aporte de
recursos que se materializou a colaboração das indústrias com a prefeitura para
garantir a eliminação das fossas e a implantação do emissário. “As empresas
participantes receberam um crédito de dez anos que foi sendo amortizado do
valor que pagariam pela coleta de esgoto”, lembra Wilson Roberto Engholm,
presidente da DAE (Departamento de Águas e Esgotos), a companhia municipal de
água e esgoto da cidade, que hoje tem 370 mil habitantes. “Hoje oferecemos
condições que poucos municípios são capazes de oferecer”, gaba-se Engholm, ao
argumentar que a estrutura de saneamento constitui um diferencial competitivo
para atração de novos investimentos.
O exemplo de gestão compartilhada não chamou a atenção das
autoridades que nessas quatro décadas administraram Guarulhos – uma potência
econômica na Região Metropolitana de São Paulo, sede do maior complexo
aeroportuário da América do Sul, também cortada pela Via Dutra, a mais importante
ligação rodoviária do país. Até muito recentemente, como mostra o estudo do
ITB, a cidade despejava todo o esgoto em rios – principalmente no tristemente
famoso Tietê –, sem nenhum tratamento. “A cidade era identificada como
responsável pela poluição do rio”, lamenta o superintendente do SAEE (Serviço
Autônomo de Água e Esgoto) de Guarulhos, Afrânio de Paula Sobrinho, que garante
haver agora “uma mudança de cultura, investimentos significativos e a
compreensão de que não estamos numa região de abundância de água”. Com “obras a
todo vapor”, ele anuncia o resultado: nos últimos dois anos entraram em
operação 2 ETEs (Estação de Tratamento de Esgotos), e outra deve ser inaugurada
este mês, elevando o índice de tratamento para 35%, na segunda mais populosa cidade
paulista, com mais de 1,2 milhão de habitantes. Falta pouco para chegar à
metade da média nacional, de 72% do esgoto coletados em 81 municípios com mais
de 300 mil habitantes que o ITB estudou.
Em muitos casos, a capilarização do serviço de coleta é um
gargalo que precisa de uma carga de bom senso para dar a comunidades de baixa
renda o acesso a esse direito humano. Atender à demanda social é o princípio
que orienta ações como o programa Se Liga na Rede, que vai custear, no Estado
de São Paulo, as conexões à rede coletora de 192 mil imóveis de famílias com
renda de até três salários mínimos. Essa ligação, de R$ 1.866, vai ser dividido
entre a Sabesp (20%), a Companhia do Saneamento Básico do Estado de São Paulo,
e o governo estadual (80%), que já havia investido R$ 8 mil por unidade para
instalar a rede que dá destino correto ao esgoto. “Melhor investir cerca de R$
10 mil com resultados que gastar R$ 8 mil sem alcançar nenhum objetivo”,
comemora o secretário de Saneamento do Estado, Edson Giriboni.
O sinal negativo da despesa com subsídio pode ser
contabilizado positivamente em razão do gasto menor com a recuperação da saúde.
Caíram 90% o número de internações por diarréia e vômito registradas entre os
75 alunos da escola Rural Erminio Cardoso, em Tijucas do Sul (PR). São
integrantes das 170 famílias beneficiadas pela reestruturação do sistema de
tratamento e abastecimento de água na comunidade Campestre, resultado da
parceria entre a Sanepar (Companhia de Saneamento do Paraná), a prefeitura e os
moradores. O presidente da estatal, Fernando Ghignone, aplaude o modelo, que
“garante qualidade de vida, saúde, cidadania às pessoas e ainda a preservação
do meio ambiente”.
Saneamento básico melhora o desempenho escolar. Estudo do
Centro de Políticas Sociais da FGV, contratado em 2008 pelo ITB, constatou que
crianças com acesso a saneamento básico têm aproveitamento escolar 30% maior do
que as desprovidas desse direito humano. São nefastos os reflexos na vida
desses jovens, praticamente condenados a menor qualificação e, portanto,
menores salário e renda no futuro.
Alto
custo para a economia
Empresas também pagam a conta do atraso em matéria de
saneamento. O estudo do ITB verificou que, em 2009, as empresas gastaram R$ 547
milhões em remuneração por horas não trabalhadas de funcionários afastados com
infecções gastrointestinais. Além de evitar esse custo sem retorno, o acesso a
saneamento básico proporciona melhoria geral da qualidade de vida e aumento de
13% na produtividade do trabalhador. Com isso, nos cálculos da FGV, a massa
salarial dos brasileiros poderia crescer 3,8%.
Falta de saneamento se destaca entre os problemas que
impedem um crescimento maior da indústria do turismo. É uma das carências
estruturais que o Ministério do Turismo identificou nos 65 principais endereços
turísticos brasileiros (incluindo as capitais, Fernando de Noronha e Porto
Seguro). Por isto, também está destinando recursos para os programas de
saneamento do Ministério das Cidades. “Saneamento básico se traduz em saúde
pública e também na qualidade do atendimento das pessoas e para as pessoas, por
isso consideramos fundamental sanar esses problemas”, afirma Fabio Rios Mota,
secretário nacional de Programas de Desenvolvimento do Turismo.
Superar o bisonho chavão de que “obra enterrada não dá voto”
é uma conquista que pode render numerosos frutos no caminho do desenvolvimento
sustentável. Com tantas implicações sociais, econômicas e ambientais, a
universalização do saneamento básico é provavelmente a obra mais abrangente e
segura para promover a sustentabilidade tendo a melhoria da qualidade de vida como
marco de uma nova etapa da civilização.
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