A era da falta d água.
O velho pesadelo dos ambientalistas de que as
reservas mundiais de água doce vão entrar em colapso em algum momento do século
XXI nunca esteve tão próximo de virar realidade. Um estudo das Nações Unidas
divulgado este ano prevê que 2,7 bilhões de seres humanos — 45% da população
mundial — vão ficar sem água no ano 2025. O problema já afeta 1 bilhão de
indivíduos, principalmente no Oriente Médio e norte da África. Daqui a 25 anos,
Índia, China e África do Sul deverão entrar na estatística. "Nesses lugares,
as reservas deverão se esgotar completamente", alerta o autor do estudo, o
geólogo Igor Shiklomanov, do Instituto Hidrológico Estatal de São Petersburgo,
Rússia.
O precário abastecimento
d’água desses lugares vai falir, por vários motivos. "Nos últimos cinqüenta
anos, a população mundial triplicou e o consumo de água aumentou seis
vezes", sintetiza o ecólogo paulista José Galizia Tundisi, do
Instituto Internacional de Ecologia. Com a população cresce também a
agricultura, a atividade humana que mais consome o líquido. "Os países em
desenvolvimento vão aumentar seu uso de água em até 200% em 25 anos",
disse Shiklomanov .
Gente demais já basta para
tornar a situação aflitiva em um terço do planeta (veja o mapa ao lado). Para
piorar, a saúde dos rios — as principais fontes de água doce da Terra — está
piorando. Metade dos mananciais do planeta está ameaçada pela poluição e pelo
assoreamento. Só a Ásia despeja anualmente em seus cursos d’água 850 bilhões de
litros de esgoto. E cada litro de sujeira num rio inutiliza 10 litros da sua água.
"A humanidade sempre tratou a água como um recurso inesgotável",
explica o hidrogeólogo Aldo Rebouças, da Universidade de São Paulo (USP).
"Estamos descobrindo, da pior forma possível, que não é bem
assim." Não se iluda. Vem aí a era da falta d’água.
Mas calma. As previsões são
turvas, é verdade. Só que não estamos inexoravelmente condenados a entrar
pelo cano. Os mananciais degradados podem ser despoluídos. Novas técnicas de
tratamento cada vez mais reutilizam a água do esgoto em países desenvolvidos.
Melhoraram, bastante, as condições técnicas e econômicas para a exploração de
fontes alternativas, como a dessalinização da água do mar.
E nem só processos caros e
sofisticados oferecem soluções para a crise. É o caso da remota vila de
Baontha-Koyala, no noroeste da Índia. Seus habitantes não tinham uma gota
d’água para beber até meados da década de 80. No final dos anos 90,
recuperaram seus lençóis subterrâneos e o principal rio da região voltou a ter
água. O que fizeram? Simples. Cavaram poços no quintal das casas para recolher
água de chuva. É o óbvio. Mas ninguém havia feito antes. O exemplo serve
para o Nordeste brasileiro. É só usar a cabeça.
Brasil tem escassez na fartura
Imagine um país que detém
sozinho, 16% do total das reservas de água doce do planeta. Que tem ao mesmo
tempo o maior rio e o maior aqüífero subterrâneo do mundo. Que, para causar
inveja, ainda apresenta índices recorde de chuva. Esse país existe. E, como
você sabe, suas maiores cidades sofrem racionamento de água.
O Brasil não usa nem 1% do
seu potencial de água doce. Ainda assim, metrópoles como São Paulo e Recife
enfrentam colapso no abastecimento público. O que acontece? Segundo os
especialistas, o problema é só mau gerenciamento. "Temos rios
degradados, índices de perda assustadores nas companhias de água e um
desperdício inconcebível por parte da população", enumera José Almir
Cirilo, presidente da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, em Recife.
É claro que o crescimento desordenado das cidades ajuda a piorar.
"Sem planejamento não há proteção de nascentes nem dos reservatórios
naturais. Isso custa caro para as companhias e para a sociedade, pois depois
será preciso despoluir a água ou trazê-la de outro lugar", diz a
coordenadora do Programa Nacional de Combate ao Desperdício de Água, Claudia
Albuquerque.
São Paulo, que este ano
começou a racionar depois de apenas dois meses de seca, é um caso
exemplar. A cidade matou sua maior fonte de água, o Rio Tietê. Hoje,
é obrigada a tirar metade do que consome de uma bacia hidrográfica
vizinha, a do Rio Piracicaba. A Companhia de Água e Saneamento Básico de São
Paulo (Sabesp) fornece a cada um dos 16 milhões de moradores da região
metropolitana 370 litros
de água por dia — o triplo do mínimo necessário para uso humano. Só que o
desperdício na rede de água chega a quase 40% — o equivalente à média
brasileira —, enquanto o aceitável no mundo é metade disso! Toda essa água
escapa por furos nos canos, redes defeituosas carantes de manutenção e por
ligações clandestinas
São Paulo joga fora, por dia,
1 bilhão de litros de água. Isso equivale ao volume da Represa de Guarapiranga,
um dos seus quatro reservatórios. Para compensar as perdas, há anos os
depósitos são explorados acima da recarga média — tira-se mais água por dia do
que os rios e as barragens conseguem repor. Deu no que deu.
O desperdício nosso de cada dia
Se as perdas de água na rede
pública são difíceis de controlar, dentro de casa elas não podem sequer ser
medidas. "O brasileiro é acostumado a uma conta de água barata e não
faz o menor esforço para evitar o desperdício", reclama o ecólogo
José Galízia Tundisi. A água pode vazar pelo ladrão de caixa-d’-água com
defeito. Ou ser empregada além do necessário para tarefas cotidianas. Tomando
banho com o chuveiro ligado durante 15 minutos, você joga fora 242 litros de água pura
— suficiente para escandalizar um israelense —, quando é possível gastar
só 81 litros
para isso.
As maiores vilãs domésticas
são as válvulas convencionais de descarga. Elas usam nada menos que 40% de toda
a água da casa. Cada segundo que você fica com o dedo na descarga são 2 litros de água que
entram — aliás, saem — pelo cano. Seu amigo israelense ficaria louco.
Para combater o desperdício
doméstico, muitos países precisaram baixar leis rigorosas. Nos Estados Unidos,
todas as casas construídas depois de 1995 são obrigadas a ter descargas com
caixas de 6 litros ,
bem mais econômicas. "Hoje é proibido até vender peças de
descarga convencional no país", diz Clyde Wilber, da Greenley e Hansen, em Washington. Como
as novas caixas são bem mais caras, os americanos tentaram dar um jeitinho:
passaram a contrabandear descargas do Canadá. O governo endureceu. "Se alguém
te pega com uma válvula convecional na mala, você pode ir pra cadeia",
conta Wilber.
No Japão já existem programas
de reciclagem dentro de casa. Além dos canos que trazem água potável, os
prédios ganharam um segundo sistema hidráulico, que recolhe e trata a água para
o reúso (veja o infográfico). O sistema ainda é experimental e, por
enquanto, custa caro. Mas pode ser uma alternativa para aproveitar cada gota
num mundo onde o líquido precioso está cada vez mais escasso. Prepare-se. Na
era da falta d’água, mesmo você, felizardo brasileiro que possui 16% da reserva
potável do mundo, vai pagar mais caro por ela.
A Terra tem 1,4 bilhão de
quilômetros cúbicos de água. A parte doce corresponde a míseros 2,5% desse
total. Só que 68,7% disso está nos pólos, em forma de gelo, e 29,9% em lençóis
subterrâneos. Os rios e lagos, de onde a humanidade tira quase toda a água, só
concentram 0,26% do total disponível do líquido. É preciosa, mesmo.
No norte da África, 95% das
reservas de água doce já são utilizadas hoje. Em 2025 a demanda pelo líquido
na região vai ultrapassar a oferta
Na Ásia Central, a exploração
chega a 84% das reservas. Deverá ultrapassar os 100% em menos de 25 anos.1. A coleta
A maior parte da água de
Orange County, na Califórnia, vem de um lençol subterrâneo. Depois do uso, o
esgoto coletado das casas vai para uma estação de tratamento convencional, onde
recebe uma primeira purificação.
2. Trato duplo
O esgoto é enviado para
a Fábrica de Água 21. Lá ele passa por um segundo tratamento, mais complexo,
que elimina elementos tóxicos, realiza diversas filtragens e adiciona cloro
para matar os micróbios remanescentes.
3. Volta à terra
Depois, o esgoto
é misturado à água subterrânea e injetado no aqüífero. O primeiro objetivo
da recarga é manter o lençol sempre cheio, impedindo a infiltração da água
do Oceano Pacífico — que está logo ali do lado e pode contaminar o reservatório
com sal. Lá dentro, ele ainda será filtrado pelas rochas do subsolo. Depois de
um ano estará pronto para ser bebido outra vez.
O Tokyo Dome não é só um
dos principais cartões-postais da capital japonesa. O estádio também é um
dos projetos arquitetônicos de aproveitamento de água mais criativos do mundo.
O teto do Big Egg (Grande Ovo, em inglês), como é conhecido, é feito
de um plástico ultra-resistente que pode ser inflado ou desinflado a qualquer
momento. A cobertura funciona como uma lona gigante para colher as chuvas. A
água que é captada ali vai para um tanque no subsolo, onde é tratada
e distribuída para os banheiros e para o sistema de combate a incêndio do
prédio. Um terço da água empregada no Tokyo Dome durante o ano inteiro chega assim,
do céu. De graça.
A cidade de Analândia, em São Paulo , adotou uma
maneira engenhosa de transformar seu principal curso d’água, o Córrego do
Retiro, numa fonte de água potável. Inventado pelo pesquisador brasileiro Enéas
Salati, o sistema wetlands usa raízes de plantas aquáticas e terra para filtrar
e purificar o líquido captado no rio. Veja como funciona.
2. Depois cai num solo
filtrante que cobre uma camada de pedrinhas e um tubo furado. Sai pronta para
receber um tratamento convencional.1.
Cuiabá
A capital do Mato Grosso está
assentada sobre a vasta bacia hidrográfica do Rio Paraguai. É servida por
rios caudalosos, o Cuiabá e o Coxipó. Chove pra burro. Ainda assim, há bairros
na periferia com abastecimento irregular. E a cidade tem o maior índice de
perdas do país: 53%, segundo a Companhia de Saneamento do Estado de Mato Grosso
(Sanemat).
2. Fortaleza
Mesmo na seca, a capital não
sofre problemas de abastecimento graças à divisão de trabalho. A cidade tem uma
companhia gerenciando a água e outra cuidando dos esgotos, que, juntas,
garantem um índice de perdas de 30%, abaixo da média nacional. Mas os
mananciais da cidade são insuficientes para suprir a população.
3. Recife
Apesar de ter muita chuva e
uma dezena de rios, a "Veneza Brasileira" convive há dois anos com o
racionamento. As perdas chegam a 45%. Bairros da periferia enfrentam rodízios de
até 48 horas. "A cidade cresceu, mas não foram feitos investimentos
na rede", lamenta-se o presidente da Companhia Pernambucana de Saneamento,
Gustavo Sampaio.
4. Maceió
Setenta por cento dos
moradores da capital alagoana têm água em casa — índice baixo, comparado com o
resto do país, que fica em torno de 90%. A média de perdas é de 45%. Com o
inchaço populacional, as encostas de Maceió foram ocupadas irregularmente,
prejudicando o abastecimento de água das regiões altas da cidade.
5. Rio de Janeiro
A capital fluminense
é suprida por um único grande manancial, o Paraíba do Sul, quase esgotado
e com água de má qualidade. Para evitar mais racionamento, a Companhia Estadual
de Águas e Esgotos mantém o reservatório no limite, desviando o fluxo de um dos
rios da região, o Guandu. Ainda assim, falta água na periferia.
6. São Paulo
O tamanho da rede hidráulica
paulistana, a maior do mundo, favorece o desperdício de 40%. São 22 000 quilômetros
de canos, o equivalente a duas vezes a distância entre São Paulo e Vancouver,
no Canadá. A Sabesp não consegue detectar todos os vazamentos. Há ainda
ligações clandestinas de todo tipo.
7. Curitiba
Basta uma estiagem mais
demorada e a região metropolitana de Curitiba é ameaçada de racionamento.
Por estar longe da parte mais caudalosa do Rio Iguaçu, que a abastece, a cidade
tem disponibilidade limitada de água. E 45% de perdas. "Nossos mananciais
são finitos e estão sendo usados acima da capacidade", diz Carlos de
Freitas, presidente da Companhia de Saneamento do Paraná.
1. Primeira parada
A água potável chega ao
edifício pela tubulação da rua e fica armazenada na caixa de água, de onde
é distribuída para os chamados usos "nobres" — higiene pessoal e
cozinha.
2. Caixa dois
O líquido coletado no ralo
segue para um tanque de tratamento no próprio prédio. De lá, parte realimenta
os canais da cidade e parte é despachada para uma segunda caixa de água
não potável.
3. Na descarga
Uma parte da água do tanque
não potável volta para os banheiros dos apartamentos — quem disse que você
precisa de água pura na descarga? De lá, finalmente corre para a rede de
esgoto.
O restante da água não
potável vai para atividades que consomem muita água, como fontes, irrigação de
jardins públicos e lavagem de carros. Tudo é reaproveitado.
A vila de Chugungo, no
litoral norte do Chile, é tão seca, mas tão seca, que seus moradores
precisam espremer a neblina para ter o que beber. Parece piada, mas
é exatamente o que acontece. Desde 1992, os 600 moradores do lugarejo se
abastecem exclusivamente da água coletada das névoas de uma montanha a 6 quilômetros dali.
Para aproveitar a umidade natural do lugar, um grupo de pesquisadores da
Universidade Católica do Chile instalou redes de náilon batizadas de
trabanieblas (pára-névoas, em espanhol) no alto da montanha. Em contato com
elas, a neblina forma gotículas que são levadas por canos até a
caixa-d’-água de Chugungo. "Chegamos a coletar 40 000 litros em um
dia", comemora a geógrafa Pilar Cereceda, que implantou o projeto.
"Dá para abastecer a vila por cinco dias."
Ninguém entende tanto de seca
quanto os israelenses. Eles moram em um deserto onde chove metade do que cai no
sertão do Ceará e onde quase não há rios. A maior parte da água é coletada
em lençóis subterrâneos, cada vez mais deteriorados pelo acúmulo anual de 350
000 toneladas de sal presente no solo. Ainda assim, Israel mantém uma
agricultura intensiva e uma produção de 2,2 bilhões de metros cúbicos de água
doce por ano. O milagre tem dois nomes. O primeiro é o reúso. "Dois
terços dos esgotos do país são reciclados", afirma Uri Shamir, diretor do
Instituto de Pesquisa de Água, em Haifa. "A intenção é chegar a três
quartos nos próximos anos." As águas residuais são tratadas para irrigar
lavouras e jardins públicos, e também para revitalizar os rios. A segunda parte
do milagre — e, segundo os especialistas, o futuro do abastecimento do país —
é a purificação da água do mar e dos depósitos salobros subterrâneos.
Israel tem hoje cinqüenta usinas de dessalinização. Até a década passada,
o método de dessalinização consistia em esquentar a água em câmaras metálicas
até separar o sal do vapor. Custava caro pois demandava muita energia.
Hoje, as dessalinizadoras funcionam usando a tecnologia da osmose reversa. Na
natureza, a osmose é a passagem de um solvente para aquilo que vai ser
dissolvido. A osmose reversa recupera na solução salina a água solvente. Usando
uma membrana de poliéster dentro de um cilindro, onde a água é empurrada a
uma pressão oitenta vezes maior que a do ar, é possível inverter o
processo natural. Ou seja, faz-se o líquido atravessar a barreira e deixar o
sal. A tecnologia é três vezes mais barata que a utilizada na evaporação.
E consome bem menos energia.
O lavrador João Pedro da
Silva mal tinha o que beber até 1997. Durante metade do ano, caminhava
para pegar água num açude a 40 quilômetros de seu sítio, em Ouricuri,
sertão de Pernambuco. "A gente ficava até três dias sem água",
lembra-se. Hoje Silva não só tem água como também colhe até três safras
anuais de feijão, arroz e mandioca. Fora as bananeiras e os cajueiros que
planta. O que ele fez foi simplesmente aproveitar a chuva que cai quatro meses
por ano na caatinga usando barragens para criar açudes subterrâneos. O esquema
consiste em impedir que as chuvas escorram por debaixo da terra e se percam
mais tarde por evaporação (veja o infográfico). A água que fica acumulada no
subsolo dura meses. Pernambuco já tem 1 000 barragens subterrâneas, feitas pela
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e por organizações
não-governamentais, como o Projeto Caatinga de Ouricuri. "A agricultura
está ressurgindo", conta Everaldo Porto, da Embrapa. João Pedro da Silva
que o diga.
2. Barrando a enxurrada com
um muro subterrâneo, é possível impedir boa parte da perda. A água
acumulada se infiltra entre o solo e o subsolo rochoso típico do Nordeste,
tornando a terra permanentemente úmida — ótima para o plantio.
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